O Passeio no Século XXI
"O Passeio Público continua sendo o mais importante jardim do urbanismo colonial brasileiro"
Entrevista com Hugo Segawa

Matéria publicada orinalmente na revista Mais Passeio - Ano 2 - Nº 13 - abril de 2003

Os jardins públicos afloraram nas cidades européias simultaneamente ao aparecimento dos primeiros espaços ajardinados na América. Em "Ao Amor do Público: Jardins no Brasil", o arquiteto e professor Hugo Segawa faz um detalhado estudo sobre a importância dos jardins públicos e botânicos na formação de nossas cidades e de como eles se constituíram em uma forma peculiar de urbanização e consolidação dos espaços urbanos. Sua obra também aborda o Passeio Público do Rio de Janeiro, que, segundo ele, encerrava um duplo espetáculo da natureza: de um lado, a vegetação exuberante, produto da ação humana, e de outro, o deslumbrante horizonte da Baía da Guanabara. Nesta entrevista exclusiva à Mais Passeio, Segawa fala não só sobre o Passeio, mas sobre o significado e a simbologia dos jardins públicos.

A vegetação exuberante é um dos espetáculos da natureza oferecidos pelo Passeio.

Qual a importância dos jardins públicos para a formação das cidades e para a afirmação da cultura urbana? Que novas mentalidades a criação destes espaços trazia?

O surgimento de jardins como espaços públicos nas cidades tem diferentes contextos no tempo. A inserção de vegetação no ambiente urbano como elementos constituintes da paisagem modelada pelos humanos data pelo menos do século 16. Entre a apreensão da vegetação como parte da mística do paraíso perdido incorporado como uma alegoria no interior das urbes, passando pela visão positiva e positivista da vegetação como fator de salubridade nas cidades do século 19 até as manifestações de natureza ético-ecológica em tempos recentes, há um longo e rico percurso mostrando os significados distintos e reveladores do imaginário ocidental sobre o jardim público e sua dimensão simbólica de urbanidade. 


O Passeio ainda é um dos mais importantes remanescentes no mundo em seu gênero de jardim.

Por que os jardins são chamados pelo senhor de antídotos das praças?

Esta afirmação faz sentido apenas se a situarmos num momento não muito fácil de precisar no tempo - arriscaria, com muita tolerância, no século 16 ou 17 - no qual se deu o surgimento do jardim público como um espaço diferenciado da praça pública tradicional (sem vegetação, vale ressaltar, nesse contexto). Sob o risco de esquematizar em demasia, mas respeitando o pequeno espaço para a resposta e a grande condescendência dos leitores, "a praça é do povo", como dizia o poeta, e o jardim público não o era, em sua origem. Os jardins públicos foram criações de uma aristocracia que estabeleceu um lugar próprio para o seu deleite, lugar para "ver e ser visto", lugar onde se introduziram práticas sociais de educação e polidez, normas de comportamento que eram antagônicos à balbúrdia típica e popular da praça. Apesar de "públicos", esses jardins em seu momento de instauração conformaram espaços segregados na cidade, construídos por e para uma elite econômica e social. Esses recintos nasceram como lugares que evitavam a alegre desordem das praças e estabeleceram elegantes e comportados cenários para um grupo social diferenciado. Evidentemente, essas distinções foram mais nítidas no passado, e hoje estão completamente diluídas, não mais fazem sentido como outrora. 


O Passeio nasceu como lugar de "utilidade pública".

Em seu livro, o senhor afirma que, diferentemente dos espaços abertos no Rio de Janeiro do período colonial, o Passeio Público não era um símbolo do governo português e sim um símbolo à natureza. Por que ele foi criado com esta mentalidade? O que o levou a se tornar símbolo de si mesmo? Por que o Passeio se diferenciou dos demais símbolos de poder da cidade?

Se prestarmos atenção a certas toponímias típicas do período colonial, podemos perceber como há uma subordinação dos nomes com símbolos do poder: Ladeira da Misericórdia, Praça da Sé, Largo da Matriz, Largo do Paço, Esquina do quartel, Campo de Santana etc. A que edificação se relaciona ou a que símbolo de poder invoca o nome "passeio público"? Esse recinto ajardinado no Rio de Janeiro era uma área livre na trama em formação da cidade que não emoldurava igrejas, como os adros; não era conformada pela confluência de vias diversas, como eram muitos largos; não era o vazio para paradas ou treinamentos militares, como os chamados campos. O Passeio Público surge do "nada", por assim dizer, resultado de aterro da Lagoa do Boqueirão e que certamente induziu a urbanização do entorno. Nasce como um jardim que não devia bênção a qualquer marco representativo do poder, mas como um lugar de "utilidade pública" decerto dentro de um perspectiva ilustrada de seu realizador, o vice-rei D. Luís de Vasconcelos. "Sou útil inda brincando", o dístico naquele menino do chafariz do Passeio, diz mais do que parece.


O terraço do Passeio superou a mitologia de temor ao mar.

Como o Passeio Público do Rio se tornou um local de apreciação da paisagem marítima, se o mar, até então, era considerado algo que infundia o temor, o mistério, o abismo do mundo não-esférico? Por que o Passeio traz essa mudança de conceito?

Na época das grandes navegações, os oceanos eram o desafio para as inteligências e as crenças dos europeus, ainda ignorantes do que existiria para além da linha do horizonte distante. Tempestades sobrenaturais, seres monstruosos e piratas impiedosos povoavam o temeroso imaginário sobre o mar. O belvedere do Passeio Público é a superação dessa mitologia ameaçadora: o horizonte da água deixava de representar os perigos insondáveis do desconhecido e se tornava objeto de apreciação estética, algo que a educação do olhar, o refinamento do pittoresco e a percepção da paisagem instauravam como valores correntes na cultura ocidental. Nesse sentido, creio que o Passeio Público é um dos únicos remanescentes no mundo que testemunha esse então novo conceito sobre o deleite proporcionado pela contemplação paisagística, de uma poética especial do olhar a natureza.

Segundo a historiadora de arte Anna Maria Monteiro de Carvalho, um dos motivos da criação do Passeio Público foi tornar a cidade mais salubre. Para ela, estava embutido no Passeio o conceito iluminista de saúde pública, pois o parque dava ar puro e luz à população. Como o senhor analisa esta afirmação?

Desconheço a íntegra desse trabalho. O saneamento e aproveitamento de charcos foi uma técnica de apropriação territorial formulada no Iluminismo, e em alguns discursos relacionados à salubridade. Mas não tenho certeza se o "ar puro" era um valor corrente na segunda metade do século 18, quando era limitado o conhecimento científico sobre a fisiologia da respiração, o mesmo podendo se dizer das virtudes da luz. Estas questões estão mais relacionadas às preocupações formuladas pela medicina do século 19, que redundou naquilo que se chamou de "medicalização do espaço", quase cem anos depois da criação do Passeio Público.


O Passeio não era um símbolo do governo português, mas um símbolo à natureza.

Por que o Passeio Público do RJ, que deveria ser um local de freqüente uso público, perdeu esta função, ganhando momentos de abandono, verificados já nos relatos dos viajantes no século XIX?

O Passeio Público nunca perdeu a função, apenas conheceu momentos de refluxo em seu uso ou apropriação. Diferentemente das praças (na acepção que expliquei algumas respostas acima), que possuem dinâmica própria quer por sua contigüidade a equipamentos públicos ou institucionais e uma confluência popular natural, o jardim público em seus primórdios se caracterizou como recintos de exceção, cujo usufruto se modelava segundo comportamentos sociais normatizados e não é à-toa que geralmente esses logradouros eram gradeados. A animação daquele espaço, conforme vários testemunhos, dependeu de incentivos para chamar freqüentadores. A maioria dos viajantes que descreveu o Passeio Público ao longo do século 19 era formada por estrangeiros e muitos deles registraram estranhamento pelo abandono aparente ou elogiavam a exuberância dos eventos ali presenciados - o que enfatiza o sentido de refluxo, e não perda. Esses olhares estavam imbuídos de distintas sensibilidades - quer pelo apreço místico à natureza, a cultura das sociabilidades desenvolvidas nos jardins em suas terras de origem, a consideração pela dimensão salubrista e/ou moralista do lugar e assim por diante, num repertório de valores vigentes, podemos afirmar com meia-convicção, até meados do século 20. As transformações urbanísticas operadas na cidade, a perda da condição beira-mar e a atração ancestral do horizonte marítimo, a metropolização do Rio de Janeiro, entre tantos fatores que se poderiam evocar, transformaram completamente o significado original daquele então único logradouro público a ostentar aquelas características.

Que espaço e função pode ter hoje o Passeio Público na cidade do Rio de Janeiro? Que usos ele pode ter e oferecer? Como salvá-lo da deterioração urbana?

Ele deve continuar a ser o que sempre foi: um jardim público, sem a pompa e circunstância que um dia o cercou. Que quotidianamente atenda a algo que se torna raro nestes momentos tão privatizantes e mesquinhos para a vida pública: proporcionar espaços públicos condignos. O Passeio Público deixou de ser o jardim público de um ponto de vista funcional (e trivial) para se tornar apenas um jardim público. Mas não é por isso que ele deixou de ser um dos recintos urbanos de maior densidade histórica no Brasil. Por sua carga de significados, o Passeio Público continua sendo o jardim, o mais importante do urbanismo colonial brasileiro e entre os mais importantes remanescentes no mundo em seu gênero.