O Passeio no Século XXI
Passeio Público - Diário da Restauração Capítulo 8

Capítulo Final

Matéria publicada originalmente na revista Mais Passeio - Ano 3 - Nº32 - janeiro/fevereiro de 2005

Quando os pesquisadores do futuro se debruçarem sobre a história do Passeio Público do Rio de Janeiro, certamente terão que dar atenção especial ao ano de 2004.

Considerado o jardim mais importante do paisagismo colonial brasileiro, o Passeio Público chegou ao século XXI inteiramente repaginado, após atravessar um período crítico, quando a cidade praticamente virou as costas para o parque.

O jardim construído por Mestre Valentim em 1779/1783, e reformado por Auguste Glaziou em 1862, passou, em 2004, por uma ampla intervenção, que consumiu 12 meses de trabalho, R$ 1,8 milhão da Prefeitura do Rio de Janeiro e o trabalho de mais de 30 técnicos de diversas áreas.

Uma equipe multidisciplinar formada por profissionais da Fundação Parques e Jardins, FB Engenharia e IPHAN, assessorada por consultores especiais, como historiadores e paisagistas, devolveu ao parque seu papel de destaque na história da arquitetura e do paisagismo do país.

A restauração do Passeio abrangeu recuperação paisagística, serviço de drenagem do terreno e do leito do lago, recuperação das obras de arte de autoria de Mestre Valentim (chafarizes, pirâmides, portão principal), restauração de elementos instalados na reforma Glaziou (banco de argamassa, postes, estátuas, ponte de ferro), recuperação e reativação do lago, implantação de iluminação especial (até mesmo subaquática), execução de trabalhos de arqueologia, tratamento fitossanitário, nivelamento do piso, recuperação dos canteiros, substituição de bancos e outros elementos do mobiliário, retorno da estátua do Tritão, do medalhão de D.Maria I e do busto de Mestre Valentim, substituição do gradil que cerca o parque com diminuição do espaçamento entre as hastes, abertura de novo portão nas proximidades da Rua Senador Dantas, entre outras ações.

Foto: Mudas novas de plantas e arbustos em fase de aclimatação no Passeio.
Reabertura

O parque, uma área verde com 33.600 m² no Centro do Rio, foi reaberto no último 14 de dezembro com novo aspecto e novos instrumentos, como placas de identificação do acervo artístico e da evolução histórica do jardim. Quem vai ao Passeio hoje pode contemplar na sua integridade as obras artísticas de Mestre Valentim, como o impressionante Chafariz dos Jacarés (a primeira fundição em bronze no Brasil), as pirâmides de gnaiss e o medalhão em homenagem à D.Maria I; além das obras introduzidas na reforma de Auguste Glaziou, em 1862, como a ponte de ferro fundido e as estátuas das Estações do Ano, provenientes do Val D´Osne.

Várias destas obras estavam danificadas pela ação do tempo, e, principalmente, pela ação do homem, seja por meio de vandalismo, roubo ou mesmo urina. O vandalismo foi responsável por grande parte dos danos ao acervo do Passeio. O anjinho aguadeiro de Mestre Valentim, integrante da Fonte dos Amores, foi pichado e teve os braços serrados. Os jacarés de bronze tiveram as caudas, as línguas e os dentes arrancados. A balaustrada de granito, ao lado do monumento, foi arrasada a golpes de picareta. A mureta que funciona como guarda-corpo das peças também foi atacada, deixando um triste rastro de destruição. Cerca de 130 balaústres da mureta do Passeio foram roubadas em curto espaço de tempo. Nem o busto do criador do parque, Mestre Valentim, escapou.

Foto: Uma palmeira imperial é plantada onde anteriormente havia uma aléia dessas espécies introduzidas por Glaziou.
Acervo

O cenário no Passeio agora é outro: Os jacarés, que se encontravam semi-soterrados e cobertos por uma camada de tinta preta que mascarava seus detalhes, podem ser vistos em sua plenitude e as peças faltantes foram recompostas. Após a retirada da tinta, o visitante tem a chance de admirar a riqueza de detalhes confeccionada pelo mestre: olhos, escamas, rugas, nervos, ossos e até os papos dos répteis de bronze chamam a atenção.

Já o anjinho aguadeiro, também conhecido como Menino da Bica, ganhou uma réplica em bronze, com a volta de alguns dos elementos originais, como a faixa que traz a legenda “Sou útil inda brincando”.

Foto: Os jacarés de bronze de Mestre Valentim tiveram elementos recuperados e voltaram a esguichar água.
Tritão, o Deus do Mar

Muitos cariocas vão conhecer agora também a réplica da escultura "Tritão, o Deus do Mar", obra de Nicolina Vaz de Assis, que havia sido roubada em 1993. A peça, executada pela artista conhecida como a primeira escultora brasileira, está localizada em uma ilha artificial dentro do lago. Com a remoção de algumas espécies vegetais, como o bambuzal central, o visitante pode também uma visão mais ampla de todo o espaço do jardim, o que não acontecia anteriormente.

Foto: A escultura "Tritão, o Deus do Mar", de Nicolina Vaz de Assis, volta ao Passeio após 12 anos.
Nova aparência

O Passeio Público ficou com boa aparência e dá gosto visitá-lo. Estive lá no dia seguinte a reinauguração e vi várias pessoas no seu interior. A solução dada com a grama junto à fonte do Valentim ficou muito boa. Vamos torcer para que ele continue assim”, disse o professor Carlos Terra, um dos maiores especialistas em Paisagismo no Brasil e na obra de Auguste Glaziou.

O arquiteto-paisagista Eduardo Barra, editor do Jornal da Paisagem, e autor de inúmeras denuncias de roubos e do abandono do parque antes da restauração, também visitou o “novo” Passeio Público: “Depois da inauguração da obra, estive no parque e constatei satisfeito que o público, por tanto tempo dali afastado, voltou a desfrutar de suas sombras generosas. Casais de namorados, turistas, entusiastas do Rio de Janeiro, curiosos e um rapaz, sem cerimônia, a lavar suas roupas no lago graciosamente concebido por Glaziou, apreciado à distância pela Guarda Municipal. As coisas pareciam voltar ao normal. Apesar do aspecto geral de obra à ‘meia-bomba’, a reconquista daquele magnífico espaço para usufruto da população em pleno centro da cidade representa uma vitória do bom senso”, revelou ele.

Foto: A nova solução paisagística do Passeio permitiu a obtenção de uma visão mais ampla do parque.
Inauguração com pompa e música

A abertura do Passeio após as obras de restauração reviveu o espírito da história do parque, já que o mesmo funcionou durante anos como ponto de encontro da sociedade, que ia ali para ouvir saraus, rodas de modinhas, choro e lundus. A cerimônia de reinauguração, no dia 14 de dezembro, contou com a apresentação de música barroca com o Trio Santa, clássicos de Villa Lobos com o conjunto Violões da UERJ, chorinho com o Clube Carioca do Choro e o Coral da Prefeitura.

Estavam presentes arquitetos, restauradores, museólogos, paisagistas, arqueólogos, historiadores, além de transeuntes, muitos dos quais jamais haviam pisado no jardim. Em discurso aos convidados, o Secretário Municipal de Meio-Ambiente, Ayrton Xerez, ressaltou a importância histórica do Passeio: “Estamos devolvendo para a cidade o primeiro parque público do Brasil. Cada pedaço dele tem um pouco de história do Rio e do país”, disse ele.

Durante todo o dia, dezenas de pessoas passearam pelas alamedas do parque, conhecendo os detalhes da obra de restauração. “Aquele espaço, com música e iluminação especial, era um convite a se entrar”, conta a especialista em marketing cultural Maria de Lourdes Abreu do Valle, que esteve presente na festa de reabertura do Passeio.
Segurança é a maior preocupação

Como não poderia deixar de ser, há vários pontos da reforma do Passeio Público que causaram controvérsias. Muitos questionaram a manutenção dos bustos de personalidades brasileiras, instalados no século XX. Alguns também não entenderam o porque de se deixar o Chafariz dos Jacarés apenas com as pedras aparentes, sem manter a vegetação que o cobria.

O arquiteto-paisagista Eduardo Barra questionou os trabalhos que foram efetuados na área de paisagismo: “Terminados os serviços de restauração, constata-se que o plantio se resume à disposição de grama sobre toda a superfície dos canteiros, incluindo, em alguns pontos, insuficientes e diminutas mudas de arbustos trazidas do horto municipal. Resultado desolador, agravado pelo fato de que, duas semanas após a inauguração, a grama já dava sinais de rarefação nas áreas sombreadas, enquanto nos trechos a sol pleno, a falta de poda e de controle de ervas daninhas transmitia um certo ar de abandono precoce, provocando a ocultação dos testemunhos arqueológicos tão zelosamente conservados pela equipe de campo. As palmeiras recém-plantadas, que complementam lateralmente o conjunto fontes-belvedere, são tão mirradas, coitadas, que não ocupariam sequer um dos vasos de qualquer shopping da Barra”, analisou ele.

Já o professor e guia de turismo Milton Teixeira criticou alguns erros cometidos nas placas de sinalização dos bens históricos: “Há erros nas placas, como o que cita a obra do Passeio como tendo sido iniciada em 1768, quando na verdade foi em 1779”.

É muita informação para o público leigo”, diz a especialista em marketing cultural Maria de Lourdes. “São muitas referências juntas, sobre Valentim, Glaziou, arqueologia, o que não deixa de ser bom, mas pode confundir o público”.

A maior preocupação de todos continua sendo os futuros usos do Passeio e, principalmente, a questão da segurança.

Para atrair o público será instalado em breve uma cafeteria, com entrada pelo portão da Rua Senador Dantas. A medida deverá colaborar para garantir a segurança dos visitantes. A prefeitura também diminuiu o gradil do parque, que será vigiado por quatro guardas municipais.

Para atrair o público será instalado em breve uma cafeteria, com entrada pelo portão da Rua Senador Dantas. A medida deverá colaborar para garantir a segurança dos visitantes. A prefeitura também diminuiu o gradil do parque, que será vigiado por quatro guardas municipais.
Foto: Assim será o pavimentação do Passeio: saibro com cimento.
Destaques da Restauração

Arqueologia – Com as escavações, foram descobertos diversos sítios-arqueológicos, como o piso do subsolo do Theatro-Cassino Beira Mar, à base de ladrilho hidráulico; o pequeno espelho d’água que cercava originalmente as pirâmides, conhecido como laguinho de Mestre Valentim; a base do Aquário construído por Pereira Passos em 1904; os remanescentes da casa que teria sido habitada por Glaziou em uma extremidade do parque; o laguinho circular fronteiriço à entrada do parque instalado por Glaziou e posteriormente aterrado; e os degraus inferiores da Fonte dos Amores, que foram aterrados por Glaziou na reforma de 1862, e que ganharam novo projeto paisagístico, com a criação de um fosso gramado. Por determinação do IPHAN, este foi o único sítio-arqueológico que permaneceu exposto. Os demais foram aterrados novamente. Os sítios foram recobertos por uma tela cor de abóbora, que faz a cobertura de toda a área escavada.

Essa marcação serve de guia para que se saiba qual foi a área escavada e qual poderá ser escavada no futuro. Fechando o sítio, estamos o protegendo”, explicou à Mais Passeio o arqueólogo Roberto Stanchi. A fase laboratorial (os vestígios encontrados nas trincheiras do Passeio foram separados por tipo, lavados, armazenados e levados para o IPHAN, onde é feita a análise definitiva) será concluída em breve, quando novos dados sobre a história do Passeio deverão ser conhecidos.

Jacarés de Bronze – Foram refeitas as partes faltantes das esculturas em bronze dos jacarés, como dentes, caudas e línguas. A obra, que está em pátina natural com uma tonalidade esverdeada, não será novamente pintada.

Fonte dos Amores - O engenheiro civil e restaurador Emílio Gianelli comandou a equipe que recuperou os trabalhos em cantaria da Fonte dos Amores e a escultura do Menino da Bica. Foram feitas próteses de granito para recompor as partes quebradas, além de recompostas as juntas e o sistema de fixação da bacia. O barrilete em pedra, que recebia a água do Menino de chumbo foi recuperado. Já a escultura do menino ganhou réplica do original em bronze, com a volta do dístico que traz a legenda “Sou útil inda brincando”.

Pórtico - a equipe dos restauradores Luís Fiorin Júnior e Iara Fiorin recuperou o trabalho em ferro do portão, além dos detalhes ornamentais. As partes atacadas por oxidação foram refeitas utilizando como molde os trechos em boas condições. Toda a grossa camada de oxidação foi retirada e trocada. Também foram recompostos os ornamentos, como volutas, mísulas, guirlandas e jarros. Os vasos em lioz que já não existem, foram reproduzidos em cimento. O medalhão de D.Maria foi limpo, restaurado e trazido de novo ao parque, após permanecer quatro anos guardado no galpão da Fundação Parques e Jardins.

Banco de Argamassa – Instalado na reforma Glaziou, o banco de argamassa imitando pedra natural foi restaurado pela arquiteta e restauradora Márcia Braga. O conjunto, feito de pedras, tijolos e argamassa de revestimento, apresenta agora aspecto bastante homogêneo. Quase todas as próteses feitas com materiais inadequados foram removidas, só sendo mantidas as que não atrapalhavam a integridade da peça. As raízes da grande figueira foram mantidas e tratadas de forma que tenham um crescimento reduzido. A limpeza foi feita respeitando toda a superfície da estrutura, sem usar nenhum tipo de ácido. Estátuas e Ponte de ferro - As estátuas em ferro fundido que representam as estações do ano foram decapadas e sofreram aplicação da tinta especial anticorrosiva. A ponte em ferro fundido adquirida por Glaziou no Val D´Osne também foi inteiramente decapada e teve aplicada a tinta de proteção.

Estátuas e Ponte de ferro - As estátuas em ferro fundido que representam as estações do ano foram decapadas e sofreram aplicação da tinta especial anticorrosiva. A ponte em ferro fundido adquirida por Glaziou no Val D´Osne também foi inteiramente decapada e teve aplicada a tinta de proteção.

Pedestal do Busto de Castro Alves – A coluna em estilo egípcio do busto do poeta baiano Castro Alves, obra de Eduardo de Sá, também foi restaurada por Márcia Braga. A peça, feita por uma mistura de pedras e argamassa, apresentava perda superficial, trincas, rachaduras e próteses. Os diferentes mármores do pedestal (verde, vermelho, branco e azul-cinza), assim como a parte superior em argamassa pigmentada, estavam recobertos com resina impermeabilizante, o que muito prejudicou a conservação da peça. Esta resina, que também se encontrava oxidada dando um aspecto escurecido aos diferentes mármores, foi removida, assim como foram removidas as partes desagregadas. O aspecto final melhorou bastante do ponto de vista estético.

Sinalização – Em toda a extensão do jardim são encontradas placas de identificação das obras de arte e da própria história do parque.

Paisagismo – A orientação para a restauração do Passeio é que se tivesse como referência o projeto de Glaziou, que alterou a planta de Mestre Valentim em 1861. Foram realizadas as seguintes ações: inventário florístico de todas as espécies arbóreas e canteiros que existiam no parque, levantamento dos problemas de fitossanidade das espécies, tratamento das mesmas, remoção de algumas espécies, replantio, como o de palmeiras imperiais numa aléia próxima à Fonte dos Amores, entre outras. O bambuzal, por exemplo, que não faz parte do jardim original de Glaziou, foi removido para outras áreas do parque para liberar a área central, para que se tenha a visão da Fonte dos Amores.

Iluminação cênica e paisagística – Foi desenvolvido e implantado um projeto de iluminação cênica, destinada a valorizar os jardins e seus ornamentos, como o Chafariz dos Jacarés, as pirâmides e a escultura do Tritão. O parque é agora iluminado por 78 postes, com luminárias em policarbonato, o que gera maior luminosidade e economia.

Retornar para listagem / capítulos de "A reforma do Passeio Público - Diário da Restauração"