O Passeio no Século XXI
Passeio Público - Diário da Restauração Capítulo 6

Passeio Público, o Museu a Céu Aberto

Matéria publicada originalmente na revista Mais Passeio - Ano 3 - Nº29 - setembro de 2004

A menos de um mês para o final das obras de restauração do Passeio Público, muita coisa já está pronta e outras ainda precisam ser finalizadas. Quase todos os tapumes que cercavam o gradil do parque foram retirados, possibilitando que os transeuntes vejam os resultados dos trabalhos.

Neste sexto capítulo da série Diário da Restauração vamos dar ênfase especial à recuperação dos elementos artísticos. Atuam hoje no Passeio três equipes diferentes, encarregadas de fazer detalhadas “cirurgias” em estátuas, esculturas e peças de ferro, pedra e madeira. O objetivo é permitir que o acervo do parque possa ser novamente contemplado pela população em sua integridade e que as características originais das peças sejam recuperadas.

O Passeio reúne um rico acervo artístico formado por objetos de diversos materiais: ferro fundido, ferro forjado, bronze, mármore de lioz, gnaiss, argamassa de cal etc. Dentre os bens contemplados pelo restauro estão o conjunto do pórtico de entrada, as estátuas das estações do ano, o banco de argamassa, os postes, a ponte de ferro fundido, o pedestal do busto de Castro Alves, a estátua do Tritão, alguns bustos, as pirâmides, os quiosques e o conjunto da Fonte dos Amores (incluindo os jacarés de bronze, a bacia, o trabalho de cantaria e o Menino da Bica).

Foto: A equipe de restauradores que está atuando na reforma do Passeio ao lado de Vera Dias, chefe da Divisão de Monumentos da FPJ
Pórtico

Um dos destaques artísticos do Passeio é seu belo pórtico de ferro, instalado na entrada do parque e executado sobre dois pilares de pedra gnaiss. Concebido no século XVIII por Mestre Valentim, o portão foi demolido na década de 1920, e reconstruído no interior do jardim. Na ocasião foram mantidos apenas os elementos pétreos como as bases, pilastras, colunas e os vasos. Em 1968, o pórtico foi novamente levado para seu local original, na mesma ocasião em que o parque voltou a ser cercado por gradis.

Com o passar dos anos, o corpo de paredes curvas do pórtico (originalmente em pedra gnaiss) foi perdido, sendo reconstruído com alvenaria revestida de argamassa. Antes da restauração, essa parede de argamassa apresentava diversos trechos perdidos, deixando aparente um miolo central de alvenaria de pedra e cimento, encoberto por uma parede de tijolos furados.

Agora, a equipe do restaurador Luís Alcides Fiorin Júnior está recuperando o trabalho em ferro do portão, além dos detalhes ornamentais. Descobriu-se que a obra não é em ferro fundido, mas em ferro forjado, tarefa difícil de se realizar nos dias de hoje, como explicam os restauradores Luis Alcides e Iara Fiorin: “Não é como o ferro fundido que se tira o modelo e derrete. Ele é feito com ferro aquecido. É um trabalho artesanal. A pessoa malha o ferro. É uma peça difícil de ser restaurada, pois é muito trabalhada para a tecnologia que temos hoje. Não temos mais profissionais especializados. Não temos nem forno de ferro fundido no Rio”.

O portão apresentava corrosão generalizada das barras de ferro, degradação por desfolhamento e perda de perfil metálico. A parte mais atingida do pórtico encontrava-se nas extremidades das duas folhas próximas às colunas de pedra, justamente a área utilizada como “mictório” público.

As partes atacadas por oxidação estão sendo refeitas utilizando como molde os trechos menos prejudicados do portão. A dificuldade se dá pela diferença dos desenhos, situação característica de trabalhos em ferro forjado. “É uma peça toda feita à mão e por isso não tem alinhamento perfeito. Uma peça é diferente da outra. Para recompor, criamos um desenho que é a soma dos dois padrões encontrados. Fizemos entre um e outro”, explica o restaurador Fiorin. Toda a grossa camada de oxidação foi retirada e trocada. A tinta protetora já foi aplicada, faltando agora o último toque (pintura artística). O medalhão de D.Maria I será todo limpo, recebendo um banho químico. A peça, que reúne bronze, ferro forjado e ferro fundido, está em bom estado de conservação.

Ainda no pórtico, o restaurador Leonardo Nunes comanda os trabalhos de recomposição dos ornamentos, como volutas, mísulas, guirlandas e jarros. A voluta do portão estava recoberta por argamassa, que foi retirada para que se tivesse novamente a volumetria original do objeto. “Por falta de conhecimento foi colocada uma argamassa de cimento que tapava toda a volumetria”, explica Leonardo.

Os vasos em lioz que já não existem, serão reproduzidos em cimento, através de moldes retirados dos vasos existentes. Acreditava-se que os vasos que ainda estão na estrutura seriam de lioz, mas os restauradores constataram que se tratavam de argamassa de cimento. A reprodução em pedra de Lioz foi descartada pela dificuldade de obtenção do material original. Já as mísulas serão refeitas em cerca de duas semanas.

Foto: A restauração dos ornamentos do portão do Passeio já começou.
Estátuas das Estações do Ano

O conjunto em ferro fundido oriundo do Val D´Osne está praticamente pronto. As estátuas foram decapadas e sofreram aplicação da tinta especial anticorrosiva. Toda a sujeira e a ferrugem foram retiradas. Apenas dois pedestais apresentavam partes oxidadas, principalmente nos tampos. Com a limpeza, os detalhes das esculturas reapareceram, como ramos e uvas. Quando terminar o trabalho nos rejuntes será aplicada a tinta final.

A equipe do restaurador Fiorin também está produzindo as peças do novo gradil, como as pontas de lanças, anuetos e as bases.
Banco de Argamassa

Instalado na reforma Glaziou, em 1862, o banco de argamassa imitando pedra natural já teve sua restauração finalizada.

O banco, feito de pedras, tijolos e argamassa de revestimento, é uma construção semicircular em torno de uma grande figueira e está localizado em uma pequena elevação em uma das laterais do parque.

O conjunto apresenta agora aspecto bastante homogêneo. A restauradora e arquiteta Márcia Braga optou por deixar trechos originais aparentes, não fazendo uma cobertura geral da estrutura. “Temos aqui uma situação em que comportam diversas soluções diferentes”, explica ela. “Há trechos originais, uma parte feita agora e uma prótese antiga que não foi mexida para não afetar a estrutura. Tivemos que fazer ajustes, já que trabalhamos com diversas situações”.

A argamassa original implantada por Glaziou, de cal hidráulica com coloração feita a partir de pó de tijolo, é bastante resistente. “Normalmente os trabalhos de argamassa não são valorizados se comparados com pintura e escultura, mas é um material que, se bem utilizado, pode durar muito tempo, como as de Israel, que têm mais de dois mil anos. Elas podem apresentar um efeito estético interessante”, diz a restauradora.

Quase todas as próteses posteriores foram removidas. Esses complementos feitos com materiais inadequados foram instalados para resolver o problema das argamassas fraturadas e perdidas, mas não se compatibilizaram em textura nem em coloração com as argamassas originais, feitas com material distinto e de maior rigidez. Só foram mantidas as próteses que não atrapalhavam nem esteticamente nem em relação à integridade da peça.

As raízes da grande figueira foram mantidas e tratadas de forma que tenham um crescimento reduzido. A limpeza foi feita respeitando toda a superfície da estrutura, sem usar nenhum tipo de ácido.

As pedras em baixo da ponte de Pereira Passos receberam tratamento semelhante às rocailles de Glaziou.

Foto: O aspecto do banco de argamassa antes da restauração (foto: Márcia Braga).
Pedestal do Busto de Castro Alves

Um dos bustos que mais chamam a atenção das pessoas que visitam o Passeio Público é o do poeta baiano Castro Alves, obra de Eduardo de Sá, inaugurada em sete de setembro de 1913. Na realidade o que impressiona não é o busto em si, feito em bronze como tantos outros, mas a coluna. A maioria dos pedestais de bustos são em granito e concreto, sem apresentar motivos decorativos. O de Castro Alves foi feito em estilo marajoara, com motivos geométricos nas cores verde, vermelho e amarelo. O pedestal é feito por uma mistura de pedras e argamassa. No passado foi aplicado nele uma resina impermeabilizante, que causou danos à obra. A água acabou entrando na pedra gerando deterioração do material. Hoje em dia já se usam resinas que permitem a passagem do vapor d´água, que inclusive contribuem na consolidação da superfície da rocha. A arquiteta Márcia Braga e sua assistente Flaise Miranda dos Santos estão fazendo um estudo da “patologia da degradação” do pedestal, identificando qual seria a melhor forma de preserva-lo. As restauradoras já iniciaram o trabalho de limpeza da peça, que não apresenta rachaduras ou problemas estruturais. “O pedestal não será pintado. Serão feitos complementos bem localizados com resina de forma bem pontual”, explica Márcia.

Foto: O estado do portão do Passeio antes e depois de iniciadas as obras de restauração. 
Jacarés de Bronze

Os jacarés de Mestre Valentim, a primeira fundição em bronze no Brasil, encontravam-se semi-soterrados e envoltos por uma camada de tinta preta que mascarava seus detalhes, além de terem sofrido corrosão localizada, perda de material metálico e manchas de escorrimento. As peças também sofreram a ação do vandalismo, perdendo partes como línguas, dentes e caudas.

O primeiro passo da restauração nesta obra foi a retirada da tinta preta e da grande quantidade de terra, que permitirá ao visitante admirar a riqueza de detalhes confeccionada pelo mestre.

A equipe que realizou o projeto de restauração do Passeio Público optou por refazer as partes faltantes das esculturas em bronze dos jacarés. Essas partes estão sendo refeitas utilizando esculturas em isopor, que vão depois compor a estrutura de madeira para servir de molde às peças faltantes na fundição. O isopor foi usado por causa da dificuldade de se trabalhar a curvatura das caudas na madeira.

Os restauradores tiveram que ter bastante cuidado na reprodução deste material para que se aproximasse ao máximo aos traços da escultura original.

As línguas e os dentes utilizaram vários tipos de forma para se chegar a um desenho final, em resina de poliéster. A restauradora Iara Fiorin conta que a língua será em chumbo, e não em bronze, pois aquela parte da peça terá contato com a água que voltará a correr na fonte.

Para redesenhar as peças faltantes, Iara utilizou antigas fotografias do Chafariz dos Jacarés e teve que estudar a anatomia do animal, constatando que realmente se tratava de um jacaré e não de um crocodilo.

Foram feitos 75 moldes de dentes para as duas bocas. Cada dente tem formato e ângulo diferente. “Deu trabalho fazer os dentes, pois são peças muito pequenas. A modelagem dos dentes demorou um mês e meio e para a fundição foram necessários quatro meses por causa dos detalhes”, explica Iara.

A obra, que está em pátina natural com uma tonalidade esverdeada, não será novamente pintada.

Foto: O restaurador Emílio Gianelli está recuperando os trabalhos de cantaria da Fonte dos Amores.
Fonte dos Amores

O engenheiro civil e restaurador Emílio Gianelli comanda a equipe que está recuperando os trabalhos em cantaria da Fonte dos Amores e a escultura do Menino da Bica, atacada por vândalos em dezembro de 2002.

Os técnicos fazem as próteses de granito para recompor as partes quebradas. Depois, em uma outra etapa, será feita uma revisão geral nos rejuntamentos, que sofreram a ação do cimento posteriormente aplicado, cuja química é incompatível com a pedra. As juntas vão ser recompostas com aglutinante de cal virgem, saibro e pó de pedra. A peça também será limpa com produtos químicos não agressores para se remover as pichações, cujas tintas são muito penetrantes. O sistema de fixação da bacia (o “u” de bronze) também será contemplado na reforma.

“As próteses serão feitas a partir do bloco maciço. Faz-se um modelo e vai se lapidando até chegar na forma da parte faltante”, explica Gianelli. Uma dessas partes é o cume do barrilete em pedra, que recebia a água que esguichava da boca de um cágado que o menino segurava com a mão direita.

A preocupação dos restauradores é manter a originalidade o máximo possível, em respeito ao patrimônio. “Esse monumento é um exemplo típico da beleza do trabalho de cantaria do período colonial. É um bloco inteiro de pedra. É extremamente representativo da manufatura, do sistema de trabalho de uma época”, diz o restaurador Gianelli.

O menino de chumbo, que era uma réplica do original em bronze de Mestre Valentim, terá uma nova cópia feita, desta vez em bronze, que atualmente sai mais em conta do que ferro fundido, além de ser mais resistente às intempéries. Em 1994, foi realizada pelo próprio Gianelli uma restauração dos braços e da faixa do menino. E foi ele mesmo quem retirou a estátua danificada em 2002.

Foto: O próprio Gianelli restaurou o anjinho de chumbo em 1994 (foto: Vera Dias).
Paisagismo

O bambuzal, que não fazia parte do projeto de Glaziou, foi removido para outras áreas do parque para liberar a área em frente, para permitir a visão do conjunto da Fonte dos Amores. O bambuzal foi podado para diminuir em altura e dividido em cinco touceiras. O novo gramado que cobrirá o Passeio já começou a ser colocado, dando outro aspecto ao jardim.

Foto: O gramado do parque já está sendo plantado.
Arqueologia

Os trabalhos de escavação arqueológica foram concluídos. Os técnicos estão agora envolvidos na fase pré-laboratorial, limpando todo o material encontrado no Passeio, que em seguida será estudado em laboratório. Por determinação do IPHAN, apenas os vestígios da Fonte dos Amores permanecerão expostos. Os demais sítios-arqueológicos serão aterrados novamente, como as bases do Aquário e da Casa de Glaziou, o laguinho de Glaziou na entrada do parque e o piso do Teatro-Cassino Beira Mar.

Os sítios que serão aterrados foram recobertos por uma tela cor de abóbora, que faz a cobertura de toda a área escavada. “Tapar um sítio é uma forma de se preservar. Se algum dia houver um projeto de fazer uma exposição ou estudo do sítio, vai estar tudo aí, é só ser escavado novamente. Essa marcação que fazemos serve de guia para que se saiba qual foi a área escavada e qual poderá ser escavada no futuro. Fechando o sítio, estamos o protegendo”, diz o arqueólogo Roberto Stanchi, da equipe que atuou no Passeio. Roberto conta que nunca um sítio arqueológico é esgotado nas pesquisas e que no relatório da Arqueologia vão constar as áreas passíveis de serem estudadas no futuro.

A cobertura de tela se dá em toda a extensão das áreas escavadas, inclusive na lateral do perfil. Depois é jogada terra, geralmente a mesma que foi retirada na escavação.

Mesmo que o aterramento dos sítios frustre a alguns, não se pode de forma alguma minimizar a importância do trabalho arqueológico realizado no Passeio, que permitiu aos historiadores e pesquisadores acrescentarem relevantes informações sobre a história do parque. Com a fase laboratorial, que terá início em seguida, novos dados certamente serão descobertos.

Os vestígios encontrados nas trincheiras do Passeio são separados por tipo, lavados, armazenados e levados para o IPHAN, onde será feita a análise definitiva, que estabelecerá dados como padrão decorativo, tipo de pasta, tipo de esmalte, o que contribuirá para a datação das peças.

Foto: O gramado do parque já está sendo plantado.
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