O Passeio no Século XXI
Passeio Público - Diário da Restauração Capítulo 5

A Redescoberta de Mestre Valentim

Matéria publicada originalmente na revista Mais Passeio - Ano 3 - Nº28 - agosto de 2004

O maior destaque artístico do Passeio Público é o conjunto da Fonte dos Amores (ou Chafariz dos Jacarés), abastecida no passado por intermédio de canos subterrâneos. Localizada na extremidade do jardim, a fonte é composta por um largo tanque de cantaria e por peças em bronze, fundidas no século XVIII, por Mestre Valentim.

O Chafariz dos Jacarés foi construído em um pequeno outeiro artificial formado de pedras presas por plantas e arbustos. Sobre as pedras se encontravam originalmente três aves pernaltas que jorravam água pelos bicos. Na base, dois jacarés entrelaçados lançavam água pelas bocas para um grande tanque. Completava o conjunto um coqueiro de ferro, que, segundo o escritor Joaquim Manuel de Macedo, acabou sendo retirado do parque, bastante deteriorado, em 1806. Em seu lugar foi instalado, em um pedestal de granito, um busto da deusa Diana em mármore.

A Fonte dos Amores tem importante papel na evolução da arte no Brasil, por representar a primeira tentativa de estilização de animais da fauna nacional. Com esta obra, Valentim torna-se um dos precursores da nacionalização da arte brasileira. Outra inovação de Valentim é o fato dele ter feito a água sair da boca de animais e não das tradicionais carrancas. Para o historiador de arte José Mariano Filho, a idéia de fazer a água jorrar da boca de animais constitui por si só, uma inovação, sob o ponto de vista concepcional.

Não se sabe qual foi o fim do busto de Diana. As aves pernaltas foram levadas em 1905 para o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde se encontram hoje no Memorial Mestre Valentim. Do conjunto original do Chafariz dos Jacarés restou o próprio corpo da fonte e os jacarés de bronze.

Há algumas semanas, a equipe que trabalha na restauração do Passeio teve uma compreensão mais apurada da obra de Valentim. Após as escavações na base do monumento, que desvendaram os degraus enterrados há mais de 140 anos, os técnicos deram início ao trabalho de restauração da fonte em si.
Chafariz dos jacarés

Os jacarés encontravam-se semi-soterrados e envoltos por uma camada de tinta preta que mascarava seus detalhes, além de terem sofrido corrosão localizada, perda de material metálico e manchas de escorrimento. Após a retirada da tinta preta e da grande quantidade de terra, a obra de Mestre Valentim pode ser vista agora com outros olhos. O visitante que for ao Passeio terá a chance de admirar a riqueza de detalhes confeccionada pelo mestre: olhos, escamas, rugas, nervos, ossos e até os papos dos répteis de bronze chamam a atenção. 

Todo mundo fala da ponte, que é francesa, veio do Val D´Osne, que é cheia de detalhes, mas ninguém fala dos jacarés. Há um desprestígio em relação ao artista nacional. Fala-se muito de Montigny, de Glaziou. O Rio não soube valorizar o artista Mestre Valentim”, acredita a chefe da Divisão de Monumentos e Chafarizes da Fundação Parques e Jardins, a arquiteta Vera Dias.

Os jacarés do Passeio impressionam pela maneira como foram executados, levando-se em conta os recursos possíveis no Rio de Janeiro do século XVIII. Trata-se de uma peça única, sem encaixe e toda emendada. Um fundidor que a examinou recentemente disse que fazer algo parecido hoje seria muito difícil – a peça teria que ser modelada em pedaços.

Vera Dias lembra que atualmente ocorre um retorno do gosto popular pelos monumentos figurativos, como as estátuas de personalidades. Valentim já fazia esse tipo de trabalho no Rio colonial. “A restauração está dando o reconhecimento ao artista Valentim e mostrando a grandiosidade de sua obra”, diz ela.

As peças faltantes dos jacarés serão recompostas, como as duas línguas, vários dos dentes e as duas caudas. A obra, que está em pátina natural com uma tonalidade esverdeada, não será novamente pintada.

Com a descoberta dos pisos inferiores do chafariz, percebe-se qual era a dimensão primitiva do conjunto, alterado posteriormente por Glaziou. Por meio da escavação arqueológica, encontrou-se o nível original do parque, escondido a 65cm de profundidade. O delicado trabalho de cantaria executado por Valentim que estava enterrado poderá agora ser exposto. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) está estudando a melhor maneira de apresentar esse vestígio. A presidente da Fundação Parques e Jardins, Vera Dodsworth, anunciou que a fonte deverá ser limpa e ganhará um guarda-corpo. Serão escavados mais 75 centímetros em volta da obra. O monumento, que tem o mérito de ser a primeira obra em bronze fundida no Brasil, voltará a funcionar como chafariz. Mais do que um simples restauro, é o resgate do próprio Mestre Valentim. 

Foto: As escavações arqueológicas revelaram a base da fonte, que havia sido enterrada por Glaziou.
Pirâmides

Na reforma empreendida no Passeio em 1862, o paisagista francês Auguste Glaziou não só enterrou a base da Fonte dos Amores, como alterou o entorno das pirâmides de gnaiss erguidas por Valentim. No projeto inicial do parque, as pirâmides, com cerca de 12 m de altura total, encontravam-se assentadas em meio a dois pequenos lagos. Após a intervenção de Glaziou, um dos lados da pirâmide hoje se assenta sobre o gramado que circunda o lago artificial, enquanto os dois outros lados assentam-se abaixo da linha d’água do lago.

Os trabalhos de arqueologia realizados em uma das pirâmides comprovaram a existência do laguinho de Mestre Valentim. Descobriu-se ainda que a pirâmide tinha uma base de fundação bem maior que a sua base aparente, já que cerca de 60 cm estavam enterrados. O lago original, que tinha uma profundidade de 40cm, hoje tem entre 90cm a 1m. Com o crescimento do terreno do jardim, o lago cresceu conseqüentemente, “sufocando” a pirâmide com o volume de terra colocado ao seu redor.

A pirâmide que traz a inscrição “À Saudade do Rio” apresenta um evidente grau de desaprumo, mostrando-se ligeiramente inclinada (segundo os relatórios técnicos, 1°24’, o que corresponde a 30cm em relação ao centro da base). Para se evitar danos futuros, a pirâmide tem sido medida de 15 em 15 dias por um topógrafo. Passados seis meses não houve nenhuma alteração. Após o término das obras, a medição da estabilidade da pirâmide prosseguirá por mais dois meses.

Foto: Por causa de uma inclinação, esta pirâmide está tendo sua estabilidade avaliada quinzenalmente.
Restauração Artística

As estátuas em ferro fundido que representam as estações do ano já foram decapadas e sofreram aplicação da tinta especial anticorrosiva. A FPJ tem o procedimento de utilizar duas cores diferentes na peça para distinguir a tinta-base de proteção e a tinta de acabamento. A tinta de proteção é em cinza claro, enquanto a de acabamento é cinza-grafite escuro. Quando terminar o trabalho nos rejuntes será aplicada a tinta final.

O relatório técnico apresentado no projeto de restauração, realizado pela empresa Ópera Prima, apontou o bom estado das quatro estátuas. Segundo o laudo, “o ferro fundido não envelhece e a sua estrutura interna é inerte. Ele resiste bem às intempéries e à corrosão, sobretudo quando pintado regularmente. Estas qualidades do material fizeram com que as estátuas chegassem aos nossos dias pouco danificadas. Não há perda de material férreo e a corrosão encontrada é localizada e superficial (em geral na base do pedestal)”.

A ponte em ferro fundido adquirida por Glaziou no Val D´Osne também foi inteiramente decapada e teve aplicada a tinta de proteção. Os postes antigos já estão sendo decapados.

Foto: As estátuas das Estações do Ano já tiveram aplicação da tinta anticorrosiva.
Portão

Foi iniciada a restauração do portão, que estava em péssimo estado de conservação, revelando o miolo central de alvenaria de pedra e cimento por causa da perda da argamassa de revestimento. A obra agora contemplará os detalhes artísticos do mesmo.

Na lateral do parque, quase em frente ao Cinema Palácio será aberto um novo portão, que, na verdade, será uma continuação do gradil, para não descaracterizar a estrutura e não duelar com o pórtico histórico de Valentim.

Foto: O estado do portão do Passeio antes e depois de iniciadas as obras de restauração. 
Paisagismo

O bambuzal, que não faz parte do jardim original de Glaziou, será removido para outras áreas do parque para liberar a área em frente, para que se tenha a visão da Fonte dos Amores. O bambuzal foi podado para diminuir em altura e será dividido em cinco touceiras. O gramado deve começar a ser colocado nas próximas semanas. A etapa seguinte será o plantio das espécies vegetais inseridas por Glaziou.

Foto: O bambuzal será removido do centro do parque para permitir a vista da Fonte dos Amores.
Arqueologia

Na planta da restauração de Glaziou, via-se, na entrada do Passeio, a presença de um pequeno lago circular, com um repuxo, de onde saia um jorro d'água. Algumas fotografias históricas também confirmavam a existência do lago fronteiriço, mesmo que alguns autores questionassem que o mesmo havia sido executado.

A equipe de arqueologia que atua na restauração do parque, de posse das referências iconográficas, iniciou a escavação no local onde supostamente havia existido o lago. Várias trincheiras foram abertas, sem que se encontrasse a estrutura. Um dia, acidentalmente, uma escavadeira esbarrou em algo na entrada do Passeio. Estava descoberto o laguinho de Glaziou.

O equívoco em relação ao local onde estava o lago se deu devido às sucessivas transformações na planta do parque. Nas fotos e referências históricas, o lago aparece distante do portão. Hoje, o portão está muito próximo ao lago, o que evidencia que a peça foi removida em algumas ocasiões. “Na referência fotográfica, o lago é centralizado com o portão. No momento está mais na lateral”, explica Vera Dias.

Quase toda a borda da estrutura foi recuperada, perdendo-se apenas pequenos trechos. O lago possuía cerca de 6m de diâmetro e 80cm de profundidade. No centro dele havia um repuxo, feito com uma peça de metal que imitava flores e plantas. A equipe ainda não sabe precisar em que época ele foi aterrado.

Com a descoberta do vestígio, pode-se obter a real dimensão do jardim. O portão avançava mais pela Rua do Passeio e ficava no eixo da Rua das Marrecas. O parque era então maior do que é hoje.

“Aqui está a prova viva que o lago foi executado”, diz a arqueóloga Jackeline de Macedo. “Atualmente está sendo feito um projeto de agenciamento junto com o IPHAN e a FPJ para definir quais vestígios vão ficar à mostra”, explica ela.

Foto: Foi encontrada a borda do largo circular.
Vestígios arqueológicos

Os arqueólogos também executam no Passeio uma outra etapa do trabalho, definida como pré-laboratorial. Todas as peças encontradas nas escavações são lavadas para que se possa fazer posteriormente a análise dos materiais. Os vestígios descobertos nas trincheiras são separados por tipo, lavados, armazenados e levados para o IPHAN, onde será feita a análise definitiva, que estabelecerá dados como padrão decorativo, tipo de pasta, tipo de esmalte, o que contribuirá para a datação das peças.

A salvaguarda do material achado no Passeio é do IPHAN. A instituição decide qual será o destino do material encontrado.

As obras de restauração do Passeio Público prosseguem nos próximos meses. E mesmo após a reinauguração do parque, a pesquisa histórica continuará em busca de informações precisas sobre os bens encontrados, como aponta a arquiteta Inês El-Jaick Andrade, que atua como voluntária junto à arqueologia: “A restauração vai ajudar a entender quais foram as interferências feitas com o tempo. Espero que com a restauração, se possa fazer esse levantamento correto de informações”.

Foto: A equipe de arqueologia trabalha na lavagem dos vestígios encontrados nas escavações.
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