O Passeio no Século XXI
Passeio Público - Diário da Restauração Capítulo 4
Matéria publicada originalmente na revista Mais Passeio - Ano 3 - Nº27 - junho/julho de 2004

Voltamos ao Passeio Público para mais um capítulo do Diário da Restauração. Faltam apenas três meses para o encerramento das obras de reforma do primeiro parque do Brasil, mas muitas surpresas ainda surgem nas escavações arqueológicas, revelando importantes detalhes da evolução urbanística da cidade do Rio de Janeiro.

Desta vez não estavamos sós:  a visita às obras foi acompanhada por um numeroso e interessado grupo. Os visitantes, alunos do primeiro módulo do curso de Paisagismo e Design da Escola de Escola de Artes Visuais da Universidade Veiga de Almeida, foram levados ao Passeio pelo arquiteto, urbanista, mestre em urbanismo (UFRJ), doutorando em arquitetura (UFRJ) e professor de urbanismo Antônio Agenor de Melo Barbosa. Também participaram da visita guiada Guilherme Araújo de Figueiredo, arquiteto, professor e mestre em arquitetura (UFRJ); Marco Cavalcanti, arquiteto, mestre em Belas Artes (EBA/UFRJ), historiador de Paisagismo e professor; e Gisela Verri de Santana, arquiteta, mestre em Planejamento Estratégico e Urbano (UFPE).

As “honras da casa” foram feitas pelas representantes da Fundação Parques e Jardins: Vera Dodsworth (presidente da instituição), Vera Dias (chefe da Divisão de Monumentos), Sylvia Coelho (diretora de Planejamento) e Stella Elliot (assessora de imprensa), além da equipe de restauração presente no local.

Foto: A presidente da FPJ, Vera Dodsworth (centro, de azul) e a chefe da Divisão de Monumentos, Vera Dias (esq. de branco) recebem os alunos de Design e Paisagismo.
Restauração Artística

A tour pelo jardim começou pelo pórtico de ferro, instalado na entrada do parque (Rua do Passeio) e executado sobre dois pilares de pedra lavrada (cantaria de pedra gnaiss). A arquiteta Vera Dias mostrou aos alunos alguns dos problemas que atingiram a peça, causando corrosão generalizada das barras de ferro. O portão apresenta manchas de urina, infiltração, fissuras, ferrugem, marcas de limpezas anteriores e argamassa de revestimento destruída. O grupo pôde observar in loco o trabalho de um funcionário, que, no momento da visita, fazia a decapagem no portão. 

Não distante daquele ponto, um outro funcionário realizava o mesmo tipo de trabalho na estátua do Outono, que integra o grupo de estátuas de ferro trazido de Paris representando as estações do ano. As esculturas foram desenhadas por Mathurin Moreau e fundidas em 1860 no Val D'Osne.

A decapagem consiste na remoção de todas as camadas de tinta que mascaram os detalhes de fundição. Na verdade, as quatro estátuas se encontravam em bom estado de conservação. Nenhuma delas apresentava corrosão acentuada, a não ser na base, onde apareciam alguns pontos de ferrugem. O único problema verificado foi o excesso de tintas aplicadas sucessivamente ao longo do tempo, como explicou Vera Dias: “As peças vão receber um protetor e uma camada de tinta nova com tratamento para ferro fundido, que age contra a corrosão. A tinta de acabamento vem depois para dar o tom.

O tom adotado para as peças escultóricas é o cinza grafite escuro. Vera Dias informa que a FPJ tem adotado essa cor em estátuas e peças de ferro fundido em toda a cidade: “Isso vai facilitar as pessoas a distinguirem o que é ferro, o que é bronze etc”.

As peças artísticas que integram o acervo do jardim também já tiveram iniciadas a restauração, como os jacarés do chafariz, que têm prontos os moldes dos dentes, línguas e caudas. O menino de chumbo, a escultura do Tritão e o busto de Mestre Valentim terão suas réplicas fundidas em breve. As obras só devem ser instaladas no final das obras, por motivos de segurança.

Foto: Funcionário faz a decapagem do portão de entrada do parque, que se encontrava corroído por ferrugem e urina. 
Drenagem

Muitos dos jovens jamais haviam pisado no Passeio e ficaram surpresos ao saber que este se trata do primeiro parque brasileiro. A presidente da Fundação Parques e Jardins, Vera Dodsworth, lembrou aos alunos que o bambuzal será retirado para remeter ao objetivo original do Passeio: que, da entrada do jardim, se pudesse ver o Chafariz dos Jacarés e o terraço. Alguns dos jovens presentes questionaram a presença de muitos buracos, na verdade as caixas de drenagem. Vera Dias revelou que não havia rede de drenagem no Passeio, o que gerava graves problemas de alagamento do jardim quando chovia. As obras de drenagem estão praticamente concluídas.

Foto: Uma das redes de drenagem instaladas no Passeio com a restauração.
Paisagismo · O Recanto Glaziou

Em seguida o grupo se deteve na região do promontório, uma das contribuições de Auguste Glaziou para o Passeio. Mestre Valentim construiu, em 1779, um jardim sobre o aterro da Lagoa do Boqueirão, o que excluía a presença de qualquer tipo de elevação. Na reforma empreendida em 1862, Glaziou deu fim à planificação do jardim de Valentim e introduziu uma pequena elevação numa das laterais do parque, onde foram instalados um banco de argamassa imitando pedra natural e um caramanchão. Por trás da rocaille, um jorro d’água simulando uma cascata natural alimentava o riacho que percorre as laterais e os fundos do parque.

A arquiteta e restauradora Márcia Braga, uma das maiores especialistas em restauro de argamassa do país, foi quem explicou aos alunos a situação em que se encontra o banco artificial de Glaziou. Márcia revelou que a construção apresenta diversos tipos de problemas, como próteses inadequadas de cimento não compatíveis com as argamassas originais, o que causa rachaduras; partes soltas, que foram posteriormente coladas; danos na recomposição de superfície, além da ação das raízes da imensa figueira que envolve a estrutura.

Segundo Márcia, o lado esquerdo do conjunto é o que sofreu maiores perdas, sem apresentar nenhuma argamassa superficial original. Não há registros se os dois lados eram semelhantes, pois as pedras do lado direito tinham outro tipo de acabamento, de forma estriada.

Na restauração do banco, a arquiteta trabalha com uma equipe formada por dois ajudantes e um pedreiro. As ações visam se aproximar ao aspecto original da estrutura instalada por Glaziou: “As próteses de cimento estavam descaracterizando o traçado original, formando blocos grandes e duros, sem desenho”, explica ela.

Com a restauração, a cascata será reativada, deixando cair novamente água para o lago. A árvore será mantida por decisão do IPHAN, já que está incorporada à paisagem do parque, além de ter uma função própria: “ela cria um micro-clima, reduzindo trocas e intensidade de calor”, diz a arquiteta.

Vera Dias informou que a ponte de argamassa instalada na reforma de Pereira Passos, no início do século XX, será restaurada também. Só não se sabe ainda que modelo será reproduzido: o da reforma Passos (de argamassa, no estilo que Glaziou construíra outras pontes, imitando troncos de árvore) ou o da primeira construção desta ponte, em madeira. Caberá ao IPHAN a decisão de qual partido seguir.

Foto: O promontório introduzido na reforma Glaziou, com banco de argamassa imitando pedra natural está sendo restaurado.
Arqueologia - Vestígios do Aquário

A parte de arqueologia foi a última a ser conhecida pelos alunos da Veiga de Almeida. Os arqueólogos Jackeline de Macedo e Roberto Stanchi deram início à explanação apresentando os possíveis vestígios do Aquário que funcionou no Passeio entre 1904 e 1938.

Roberto contou que a equipe de arqueologia tem feito abertura de trincheiras, diferente das usuais quadrículas, pois o objetivo do trabalho é encontrar estruturas de construções. Os locais são abertos seguindo um mapeamento realizado a partir de fotografias e plantas históricas.

Um embasamento de grande estrutura foi encontrado no local onde foi mapeada a existência do Aquário; contudo os arqueólogos não podem afirmar com precisão de que aquele seria o fundamento do edifício construído na gestão Passos. Sabe-se que naquele ponto do Passeio também existiu um café-concerto (instalado na reforma Glaziou, em 1862).

Jackeline e Roberto ainda estão buscando mais informações para identificar de qual construção seria a estrutura achada: “O Aquário era uma edificação simples, por isso nosso questionamento em relação a esse embasamento, que seria de uma estrutura muito pesada”, diz Jackeline.

Roberto explica que o IPHAN e a Fundação Parques e Jardins devem criar no Passeio um museu sítio-arqueológico. À princípio ficariam abertas apenas três áreas, representando momentos diferentes do parque: Valentim, Glaziou e o Teatro-Cassino Beira-Mar.

Os remanescentes dos vários modelos de arruamento encontrados na região do terraço do parque serão elencados como trechos importantes da história urbana do Rio de Janeiro, mas não serão mantidos em exposição.

Foto: A argamassa da rocaille, que apresenta diversos problemas, também será restaurada. 
Arqueologia - Chafariz dos Jacarés

A maior descoberta realizada na área de arqueologia nas últimas semanas está relacionada ao Chafariz dos Jacarés (que integra o conjunto chamado de Fonte dos Amores).

Criada por Mestre Valentim, a Fonte dos Amores é o grande destaque artístico do Passeio Público. Localizada na extremidade do jardim, a fonte é composta por um largo tanque de cantaria e peças em bronze, fundidas por Mestre Valentim na Casa do Trem.

Trata-se de uma fonte semicircular construída em um pequeno outeiro artificial feito de pedras presas por plantas e arbustos. Originalmente, sobre as pedras se encontravam pousadas três aves pernaltas que jorravam água pelos bicos. Na base, dois jacarés entrelaçados lançavam água pelas bocas para um grande tanque. Completava o conjunto um coqueiro de ferro.

Do conjunto original do Chafariz dos Jacarés não restou quase nada, a não ser o próprio corpo da fonte e os jacarés. As aves pernaltas foram levadas em 1905 para o Jardim Botânico. Não se sabe o fim do coqueiro.

Há aproximadamente três semanas, a equipe de arqueologia encontrou os indícios da integridade original do chafariz, que estavam cobertos. Após uma reforma, os degraus inferiores da fonte foram aterrados, assim como o piso primitivo daquele local. Foi revelado que o nível do jardim ali era 0,65m mais baixo. A equipe acredita que essa deposição ocorreu após sucessivas reformas implantadas no parque, a partir da reforma de Glaziou, em 1862.

Os arqueólogos resolveram escavar depois de checar o levantamento fotográfico, que indicava alterações do nível feitas naquele local. “Estamos avaliando se o nível daquela área será rebaixado total ou parcialmente. Por ser o Chafariz uma das raras obras de Mestre Valentim conservadas na integra, a estrutura merece destaque”, diz Jackeline de Macedo.

Foto: Degraus inferiores do Chafariz dos Jacarés foram descobertos pela equipe de arqueologia. O nível do jardim era mais baixo naquele local.
Iluminação

O projeto de iluminação tem por objetivo dar destaque aos principais elementos arquitetônicos do Passeio, em especial, os remanescentes do jardim original, de Mestre Valentim: o pórtico de entrada, as pirâmides e o conjunto da Fonte dos Amores.

Em toda sua história, o Passeio foi iluminado por diferentes tipos de postes. As luminárias de vidro, bastante usadas no parque, são difíceis de se reproduzir atualmente devido à falta de mão de obra especializada, já que não eram feitas em escala industrial, mas artesanalmente.

Os novos postes do jardim terão luminárias de policarbonato, instaladas pela primeira vez nos espaços públicos do Rio. Esse tipo de luminária proporciona uma boa distribuição e um ambiente livre de ofuscamento e sombras, além de ser mais resistente à ação de raios ultravioleta. Elas são transparentes e direcionadas · têm um foco voltado para o Passeio e uma outra parte ondulada virada para as árvores, para gerar sombra. A intensidade de luz não será a mesma nos dois lados. O resultado será uma iluminação menos ofuscante e mais eficiente.
Arqueologia - Casa de Glaziou

A visita chegou ao fim na área onde foram descobertos os remanescentes da casa de Glaziou. O arqueólogo Roberto ressaltou a importância da inclusão desta disciplina no projeto de restauração do parque: “O trabalho aqui no Passeio é um divisor de águas. É o primeiro trabalho em todo o Brasil que utiliza arqueologia em um parque. Esperamos que isso gere uma nova mentalidade, afinal as cartas patrimoniais recomendam o trabalho interdisciplinar, o que nem sempre acontece. Com o impacto da restauração do Passeio, esperamos que esse tipo de ação se torne mais comum”, disse ele ao grupo.

O professor Antonio Agenor, que promoveu a visita ao Passeio como parte de uma série de atividades acadêmicas e interdisciplinares, compostas por aulas externas e palestras técnicas, ressaltou a importância dos alunos acompanharem a obra de restauração: “A idéia de tirar o aluno da sala de aula e fazer com que ele vivencie e observe com olhar crítico as qualidades, carências e deficiências dos espaços públicos na cidade do Rio de Janeiro é fundamental para a formação de um profissional consciente e sintonizado com as novas demandas que a sociedade desta era da informação necessita atender. A obra de restauração do Passeio Público é, portanto, algo que deve ser elogiado por todos aqueles que amam verdadeiramente esta cidade”.
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