Entrevista com Naylor Barbosa Vilas Boas
Naylor Barbosa Vilas Boas é arquiteto, mestre em História e Teoria da Arquitetura (PROARQ/UFRJ), professor substituto da FAU/UFRJ e professor das faculdades de arquitetura das universidades Gama Filho e Estácio de Sá. As imagens apresentadas são provenientes da maquete eletrônica elaborada pelo autor para ilustrar sua dissertação de mestrado "
O Passeio Público do Rio de Janeiro: Análise Histórica através da Percepção do Espaço", defendida no PROARQ / UFRJ em janeiro de 2000.
Como surgiu o interesse em estudar o Passeio Público?
Meu primeiro interesse, antes mesmo de estudar o Passeio Público, foi pelas intervenções paisagísticas românticas no Rio de Janeiro, mais precisamente pelo trabalho do arquiteto-paisagista francês Auguste Glaziou e as marcas que ele deixou pela cidade. Em 1996, tive oportunidade de realizar um minucioso levantamento, além de diagnosticar as condições de conservação de dois monumentos existentes nos jardins da Quinta da Boa Vista: o Templo de Apolo e o Pagode Chinês. Observei que aquele espaço não era exatamente o que parecia ser. Por baixo daquelas "pedras", bastante danificadas pelo tempo, escondiam-se restos de tijolos maciços e entulho. Por baixo daquela estrutura de "bambu" do mirante, podia-se notar, onde já não mais existia o recobrimento original, uma estrutura de metal.
A grande árvore que existia ao lado do templo grego ficava exatamente alinhada a um de seus eixos de simetria. Ou seja, passei a perceber que me encontrava em um magnífico cenário, minuciosamente pensado para parecer o mais natural possível. A partir de então, o meu interesse por estudar o que efetivamente estava por trás daquilo, conceitual e historicamente, foi o principal motivo para elaborar a proposta para meu trabalho de mestrado. Em primeiro momento, pensava fazer um estudo sobre a obra de Glaziou - não exatamente sobre o Passeio Público, mas também sobre o Campo de Santana e outras obras suas, sempre buscando o que estava por trás dessa sua linguagem de trabalho. Porém, ao começar o trabalho pelo Passeio, percebi que só ali já havia elementos suficientes que justificassem plenamente um trabalho exclusivo sobre aquele espaço.
Qual a importância do Passeio Público para a história do Rio e Brasil, e para a história paisagística e urbanística da cidade?
A importância do Passeio Público se dá, entre outras coisas, por ter sido o primeiro jardim público existente em nosso país. Por iniciativa do Vice-Rei D. Luis de Vasconcelos, no final do séc. XVIII, aterrou-se ali a Lagoa do Boqueirão e no lugar erigiu-se um belíssimo jardim para usufruto da população. Tal iniciativa foi um feito inédito, que refletia na colônia os ecos do Iluminismo que despontava na Europa. Essa maneira de ver o mundo, baseada no racionalismo, inaugurava também uma nova relação do homem com a natureza. Esta já não era mais fonte de temores, mas sim de conhecimento, que se apresentava ao homem de certa maneira virgem e pouco compreendida.
E é no Passeio Público que se materializa paisagística, arquitetônica e urbanisticamente, pela primeira vez no Brasil, esta maneira de entender o mundo. No traço racional e geométrico de Mestre Valentim, nas espécies vegetais ali introduzidas, nos elementos arquitetônicos utilizados - fontes, pirâmides etc. - no terraço à beira-mar, belvedere contemplativo. Em todos estes elementos pode-se identificar esta forma de ver o mundo e uma tentativa de trazer para o Rio de Janeiro uma nova maneira de se relacionar com a cidade. Pode-se identificar também na concepção original do Passeio Público uma iniciativa de ordenamento urbano, pois a lógica de seu traçado extrapolava os seus muros, quando se identifica que seu caminho principal se alinhava com a Rua das Marrecas, e que terminava no antigo Chafariz das Marrecas, já demolido. Assim, tínhamos um perfeito alinhamento entre a Fonte dos Amores, no interior do Passeio, e o Chafariz, no outro extremo, já fora dos limites do jardim.
Do que trata sua dissertação de mestrado "O Passeio Público do Rio de Janeiro: Análise Histórica através da Percepção do Espaço"?
A idéia inicial era elaborar uma dissertação ligada à História da Arquitetura. Paralelamente a isso, fui travando contato com outras questões relacionadas à análise e percepção do espaço construído, que devo muito à experiência adquirida junto ao Departamento de Análise e Representação da Forma, na FAU / UFRJ. Tais experiências foram extremamente importantes pois me deram subsídios para poder enxergar e entender a evolução histórica de um espaço como o Passeio Público sob outro prisma, que não a de um historiador que o analisa "do lado de fora".
Assim, comecei a pensar quais seriam as percepções de uma pessoa que por ali caminhou, antes da reforma de Glaziou. Será que por este prisma as modificações de Glaziou foram realmente tão prejudiciais assim ao Passeio Público, como denunciou, na década de 1940, José Marianno Filho? Sendo assim, procurei fazer na minha dissertação de mestrado - agora muito mais relacionada à Teoria da Arquitetura, defendida no PROARQ / UFRJ em janeiro de 2000 e ainda não publicada integralmente, uma análise da evolução histórica do Passeio Público sob uma outra ótica, a de um observador hipotético que por ali caminhava. Ao fazer esta análise nos dois principais momentos do Passeio - o de Mestre Valentim e o de Glaziou - tive subsídios para compará-los e concluir que Glaziou, ao reformular inteiramente o Passeio Público com sua estética romântica enriquece enormemente a experiência espacial vivenciada de quem por ali passeava.
Como e para que foram feitas as maquetes eletrônicas? Que contribuição elas podem dar para um estudo mais detalhado do Passeio e da própria história do Rio de Janeiro?
A ferramenta que utilizei para poder reconstruir um espaço que já não mais existe há pelo menos 200 anos foi a computação gráfica. Através da reconstrução virtual do Passeio Público de Mestre Valentim, pude ter subsídios para simular, com certo grau de precisão, as percepções de alguém que caminhava por ali, para só então poder analisá-las. É importante notar que quanto mais precisa é esta reconstrução, mais fidedigna se torna a resposta visual obtida do modelo.
No caso do modelo do Passeio, um espaço que tinha, genericamente, 200x200m, chegou-se a um nível de detalhamento da ordem de 1 a 2cm. Também é importante esclarecer que o enfoque principal foi dado para a reconstrução do Passeio de Mestre Valentim, visto que o Passeio de Glaziou ainda hoje existe, mesmo que só no espaço dos jardins. Desta forma, a reconstrução das condições hoje inexistentes de alguns lugares do Passeio Público de Glaziou se deu muito mais por foto-montagens do que pela utilização exclusiva do modelo eletrônico, diferente do caso do projeto de Mestre Valentim. O processo de realização deste modelo envolveu exaustivas pesquisas iconográficas, análise das poucas fotografias existentes de antes da reforma de Glaziou, gravuras, plantas e mapas antigos, além de relatos de viajantes que ali estiveram. Uma vez de posse deste material, muitas vezes pouco ilustrativos ou até mesmo contraditórios entre si, comecei a interpretar através de croquis todos os detalhes mais importantes dos diversos elementos a serem reconstruídos - o portão, a Fonte, os jardins, os pavilhões, o próprio terraço etc.
É importante observar o uso dos croquis como instrumento de entendimento e interpretação da Arquitetura, para que se esclareça as relações entre os diversos elementos componentes daquele espaço, que muitas vezes a análise da iconografia existente não esclarece, somente sugere. No meu entendimento, a importância da reconstrução virtual do Passeio Público de Mestre Valentim extrapola a aplicação que teve para minha dissertação. A partir dela, pode-se obter um maior conhecimento daquele espaço, pois como observado anteriormente, o modelo funciona como uma síntese de todas as antigas representações iconográficas existentes. Deste modo, o modelo como espaço (re)construído, ainda que digitalmente, pode atuar como suporte para quaisquer outros estudos ou análises posteriores. Em minha dissertação, reconstruo o Passeio Público dos muros para dentro, fazendo uma análise arquitetônica daquele espaço. A partir das experiências em reconstrução e representação digital que venho adquirindo junto ao grupo de pesquisa LAURD - Laboratório de Análise Urbana e Representação Digital - vinculado ao PROURB / UFRJ, posteriormente pretendo conduzir a reconstrução virtual do Passeio dos muros para fora, onde parte da cidade existente na época será modelada, para que se tenha subsídios para um maior entendimento das relações do Passeio Público com a cidade, permitindo desta vez uma análise urbana daquele espaço.
Como deve ser a restauração do Passeio?
Ao longo dos seus 200 e poucos anos, o Passeio sofre sistematicamente com o abandono. É uma situação cíclica, onde o poder público intervém naquele espaço, fazendo algumas obras e melhorias, passa-se algum tempo onde o lugar se torna freqüentado, não se dá a devida conservação e algum tempo depois, dependendo do nível da intervenção da ocasião, lá se cai o Passeio novamente em abandono. Essa rotina se repete desde sua inauguração. Atualmente, estamos em um destes momentos de total abandono, onde existem promessas de restaurações - não reformas, o que é uma boa notícia - mas que efetivamente não se tem nenhum resultado visível até o momento.
Qualquer tentativa de restauração daquele espaço deve levar em conta que não basta somente recuperar a infra-estrutura e os jardins, mas deve-se recuperar também as relações espaciais que um dia ali existiram e, mesmo sabendo da impossibilidade de restaurá-las como eram, pelo menos deve-se reinterpretá-las. Só assim, tal restauração será bem sucedida.