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Século XXI

Matéria publicada na Mais Passeio - Ano 2 - Nº 21 - dezembro de 2003 
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A Esfinge Carioca
Em dissertação de Mestrado, o arquiteto Claudio Taulois analisa o Passeio Público
sob ponto de vista do desenho e tenta decifrar como foi concebido
o projeto de Mestre Valentim
O Passeio Público do Rio de Janeiro, o primeiro parque brasileiro e o mais importante jardim colonial do país, é envolto em uma áurea de mistério no que se refere à concepção de sua planta original. Projetado e construído no final do século XVIII por Mestre Valentim, a mando do vice-rei d.Luís de Vasconcelos, o Passeio inova também por apresentar um terraço voltado para o mar, algo totalmente incomum para a época.
O arquiteto Claudio Taulois, responsável pelo projeto Rio Cidade da Av. Rio Branco, entre outros trabalhos, sempre se intrigou com o lado "esfinge" do Passeio. Em dissertação de Mestrado defendida em 28 de agosto último no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb) da FAU-UFRJ, Taulois ampliou e aprofundou o estudo de padrões que são referências para o desenho e a implantação do Passeio, verificando-os em mapas de diferentes arquivos.
O traçado do Passeio Público em formato trapezoidal,
aqui reproduzido por Claudio Taulois
 
Em seu trabalho, intitulado "O Passeio Público setecentista, a cidade e a memória além-mar: traçado urbano e traça do jardim", ele procurou identificar a possível memória de além-mar que pudesse ter influenciado a concepção do jardim carioca. "Minha dissertação de mestrado era originalmente sobre a avenida Beira-Mar e os espaços públicos em seu entorno. O Passeio Público, por ser o espaço mais antigo, foi analisado sob o ponto de vista de desenho, e era o mais misterioso de todos, porque não se conhece direito a forma como ele foi concebido", explicou o autor em entrevista exclusiva à Mais Passeio.
Mestre Valentim, autor do projeto do Passeio,
não tinha conhecimento e vivência da arquitetura
dos jardins em padrão na Europa

Na dissertação, que passou a abordar apenas o Passeio, ele revela que a bibliografia em geral sobre o jardim enfoca mais a história do que o desenho, o projeto em si. Alguns pesquisadores dizem que o desenho do Passeio teria sido feito à semelhança do Passeio Público de Lisboa. Outros apontam os jardins do Palácio de Queluz ou o Jardim do Paço do Bispo de Castelo Branco, todos em Portugal, mas quando Taulois foi pesquisar, percebeu que não havia semelhanças nos elementos do desenho, na forma de definir o jardim, nos materiais, no espírito, e, principalmente, na planta.

"Recentemente levantou-se a tese de que Mestre Valentim não teria estado em Portugal como acreditava-se. É claro que ele era um artista muito talentoso. Ele recebia a cultura transplantada; recebia informações sobre coisas em voga, processava, e tinha compreensão daquilo", diz Taulois. Mas o Rio não possuía projetos urbanos para que Valentim tivesse referências. Não havia jardins, apenas hortas e canteiros. Os jardins eram discretos e não públicos. "Não havia a cultura européia dos grandes jardins, que era uma afirmação de poder da nobreza e da burguesia. É algo fora da nossa cultura", explica o arquiteto.

Devido a essas constatações, surgem questões-chave: De onde Valentim teria recebido essas informações? Como foi definido esse desenho? Por que não era retangular ou quadrado? Por que trapezoidal?

Taulois explica que o Passeio tem uma forma totalmente irregular: é um trapézio, uma forma pouco clássica, inclusive chamado de símbolo do fracasso. As formas certas para aquela época eram o quadrado, o círculo, o retângulo e o octógono. O trapézio era muito incomum, só aparecendo quando gerava um octógono.
Tais evidências nos levam a acreditar que Valentim não poderia ter pensado o Passeio por conta própria, por falta de conhecimento e vivência da arquitetura das cidades e dos jardins em padrão na Europa daquele momento.
A chave do enigma pode estar na pessoa do vice-rei da Colônia, o português D. Luís de Vasconcelos e Souza. Protetor de Mestre Valentim, D. Luís chegou ao Rio de Janeiro em março de 1779. O governo do vice-rei foi marcado por obras consideráveis de melhoramentos e embelezamento da cidade, sendo a principal delas o aterramento da pestilenta Lagoa do Boqueirão e a criação do Passeio Público em seu local. "Não há dúvidas de que o vice-rei teve participação importante na parte conceitual e de concepção teórica do Passeio", acredita Claudio Taulois.
O vice-rei D. Luís de Vasconcelos provavelmente contribuiu com informações para a elaboração da planta do Passeio
Os elementos de projeto semelhantes
O Jardim do Cerco, no Convento de Mafra, tem traçado e vegetação semelhantes aos do Passeio carioca
O Jardim do Cerco, em Mafra, tem características
próximas ao Passeio Público do Rio

Para realizar sua dissertação, Taulois pesquisou mais de mil plantas e fotografias de projetos de jardins europeus, buscando identificar quais teriam sido as possíveis fontes de inspiração para Valentim.

E foram justamente alguns jardins portugueses que mais apresentaram semelhanças, como o Jardim do Cerco, do Convento de Mafra, e o Jardim do Palácio dos Marqueses da Fronteira, em Benfica, Lisboa.

O Jardim do Cerco é um dos que mais apresenta semelhanças com o desenho do Passeio. Lá estão, como no jardim carioca, um portão, um caminho com elementos fortes nas partes de cima e de baixo, o trívio, a aléia lateral, o canteiro, o passadio. O traçado e a vegetação também eram muito semelhantes. Assim como o Passeio original, o Cerco era murado, na melhor tradição dos jardins portugueses.

A Casa do Lago do Palácio dos Marqueses da Fronteira, em Lisboa, é semelhante ao terraço do Passeio
CASA DO LAGO DO PALÁCIO DO MARQUÊS DE FRONTEIRA, BENFICA, LISBOA; ca. 1650
TERRAÇO OU CASA DO MAR DO PASSEIO PÚBLICO CARIOCA, 1779; O MESMO PAVILHÃO DE JARDIM SÓ QUE,
EM VEZ DE CONTEMPLAR O INTERIOR ABRE-SE TAMBÉM PARA A VISTA DO MAR
O ambulatório do jardim dos Marqueses da Fronteira,
com dois pavilhões quadrangulares, escada de acesso,
telhado piramidal e estátuas de Mercúrio.

Já o jardim do Palácio dos Marqueses da Fronteira tem como destaque um promenade (ou ambulatório), por onde as pessoas passeavam, chamado de Casa do Lago. O terraço assemelha-se muito ao do Passeio por ser constituído de dois pavilhões quadrangulares nas pontas, escada de acesso, telhado piramidal pronunciado, tendo, em cima de cada, estátuas de Mercúrio. No Passeio também havia dois pavilhões quadrangulares situados nas extremidades do belvedere e encimados pelas estátuas de Mercúrio e Apolo. A única diferença é que o terraço dos Marqueses da Fronteira contempla o próprio jardim, enquanto o do Passeio é voltado para o mar. E a grande revelação é que o vice-rei D.Luís Vasconcelos era sobrinho do Marquês da Fronteira. Seria uma grande coincidência?

"A existência de referências ou a intervenção de D. Luís em nada reduzem a importância do risco de Mestre Valentim", diz Taulois. "O estudo entendeu que a mão mulata fez, em pleno Brasil-colônia, um risco original, considerando os elementos naturais e as ocorrências encontradas na área, e, com domínio do projeto urbano, adotou elaborada geometria projetual para realizar um plano que se inseria na cultura européia. E, nesses desígnios, Valentim mostrou coragem. Com tal empenho, o vice-rei e o mestre ergueriam sobre a imunda Lagoa do Boqueirão, o jardim público que levaria os cariocas à descoberta do mar como objeto de admiração e prazer, atitude que marca, até nossos dias, o espírito de sua cidade", finaliza o autor.

No Marqueses da Fronteira também há piso em
mármore policrômico e bancos encaixados na alvenaria
como no Passeio original
 
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